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Inversões tupiniquins



Ela chegou toda perfumada, esplendorosa na sua cabeleira louríssima e na bela roupa de grife. Foi direto ao caixa, cumprimentando uns e outros. Sequer olhou a enorme fila que deixou atrás de si. Mas a fila a olhou, estarrecida. Um ou outro resmungo baixo e parecia que ela tinha o direito de estar ali, balançando suas pulseiras e sorrindo animadamente para o caixa do banco.
Depois de alguns segundos, uma voz no fim da fila:
- A senhora me desculpe, mas a fila é aqui atrás.
O segurança do banco, educadamente, sussurrou-lhe:
- É a esposa do Dr. Fulano.
E a voz calou-se. A fila ficou estática, a espera de ver o painel eletrônico de outro caixa chamar o próximo.
Quem já não presenciou cena parecida? Seja em banco, órgão público ou seja lá onde tiver uma fila de gente comum. À gente comum isso parece um abuso, mas são tantos os abusos de poder que este até parece insignificante e nem merece uma briga. Acaba por virar inveja. Qualquer um daquela fila, depois de passar longos minutos em pé, até agradeceria se lhe fosse dado o direito de ser atendido à frente dos outros. E não haveria nenhum constrangimento, nenhum problema de consciência.
Assim como não parece estranho à maioria usar um conhecido para tirar uma multa de trânsito, ou arrumar um emprego através de um “pistolão”, ou aceitar o gabarito de uma prova, ou contar uma mentirinha para o patrão justificando uma noitada no meio da semana. Coisinhas sem importância, que nem merecem reflexão. As mesmas coisinhas sem importância que são contadas a qualquer um, até com um certo orgulho. E assim vamos transmitindo uma cultura onde o conceito de honestidade vai se modificando e se elastificando. E a vida vai escorrendo. Continuamos reprovando os funcionários públicos que se deixam corromper, gritando contra a vergonhosa corrupção dos nossos políticos, arregalando os olhos a cada nova manchete, fechando-os às mentirinhas que precisamos contar e ensinando às nossas crianças um código de ética politicamente correto, onde valores como verdade e honestidade têm a beleza que apenas as palavras sabem dar a eles. Mas nos esquecemos que as crianças, na sua natural dificuldade de entender um conceito abstrato, aprendem mesmo é através do que vivenciam, do que vêem, do que ouvem. E assim vamos fazendo crescer um círculo vicioso de pequenas corrupções que passam despercebidas até a nós mesmos e apreendidas por aqueles que nos têm como exemplos a serem seguidos.
Alguém acredita que esteja aí a explicação para a falta de vergonha dos mensalistas, sanguessugas e cia ltda? Claro que a maioria de nós dirá não. Mas fico pensando naquele antigo ditado: a ocasião faz o ladrão. E esta ocasião pode começar na multa de trânsito e ir crescendo, crescendo, crescendo. Que exagero, dirão os meus amigos. E terão razão. Porque os meus amigos não são políticos, não são corruptos e não têm na família nenhum abjeto rato de esgoto.
Mas quantos de nós estamos acima da lei da vantagem? Quantos? Este número jamais será contabilizado, com certeza. Mas, também com certeza, a corrupção jamais deixará de existir no país tupiniquim enquanto os valores estiverem invertidos. Ser rigidamente honesto é quase vergonhoso. Marido que não trai a mulher é babaca. O sujeito que não compra recibo para diminuir o imposto de renda “dá mole” para o governo. O empregado que nunca falta ao trabalho é puxa-saco de patrão. E a lista de babaquices se estenderia por toda a página se já não fosse conhecida por todos nós.
Será que novamente estou tendo delírios? Ou está mesmo na hora de revermos alguns conceitos?

Ler e Escrever: Transformação

Dizem que escrever é uma arte. Pode ser. Para mim é um desafio que se renova a cada manhã. Porque quero escrever e ser lida. Lida por leitores que têm à sua disposição grandes mestres da literatura e vivem num tempo em que a comunicação ganha agilidade com a tecnologia e onde imagens substituem letras.

Sempre adorei escrever. Tenho para mim que nasci escrevendo, tal é a necessidade que tenho de juntar letras. O que já escrevi nesta vida daria para editar uma estante cheia de livros – se quantidade fosse qualidade, é claro. Pois bem, descobri que, por melhor que eu escreva, nunca serei lida como quero. E não é porque eu escreva tão mal assim. É porque tem uma doença grave e crônica no brasileiro que impede que eu seja lida. Doença esta que é combatida por mim, educadora, mas que vive também em mim, leitora. Preguiça! Isso mesmo, temos preguiça de ler.

Quando eu era professora de ensino fundamental, vivia brigando com minha criatividade para criar o hábito de leitura nos meus alunos. E por mais que eu criasse motivações, a leitura deles nunca alcançava o nível que eu achava satisfatório. Não desisti, mas também não consegui.

Um dia, lendo uma entrevista de Foucault ao Le Monde, comecei a entender esta relação escritor-leitor. E comecei a perceber, até mesmo em mim, a preguiça que todos temos de nos entregarmos a uma leitura. Esta preguiça não é privilégio do brasileiro, mas aqui ela parece ser imensurável - como alguns outros defeitos tão nossos conhecidos e tão inteiramente tupiniquins.

Comecei então a me preocupar mais com a minha escrita. Já não seria suficiente ter clareza, ter boa argumentação e abordar temas interessantes. Seria preciso levar em consideração a preguiça. Esta mesma preguiça que me fazia ler um texto em diagonal, perdendo muitas vezes a mensagem implícita e, de certa forma, desvalorizando o trabalho de quem escreveu. Seria preciso aprender a arte da síntese: escrever da forma mais interessante possível, com um menor número de letras possível.

Embora para muitos e importantes escritores não seja fundamental a opinião do leitor, a mim parece imprescindível ter uma mensagem escrita decodificada por quem me lê. Porque uma escrita, seja ela qual for, só tem sentido se alcança quem a lê. Passei então a escrever para o meu leitor, respeitando a sua preguiça, mas tentando criar nele a vontade de continuar lendo. É claro que nem sempre consigo. (Especialmente quando o que escrevo parece não ter interesse nem mesmo para mim.) Mas é preciso continuar tentando. Porque escrever e ler são atos que interagem entre si e é condição para o pensar, o crescer, o transformar.

Continuemos, pois, escrevendo, lendo, interagindo. E nos transformando através da escrita e da leitura.

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