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Redescoberta

Descia e subia a rua todos os dias. E todos os dias corria para garantir os quereres do marido, dos filhos, do país. De tanto correr nem se lembrava que tinha um caminho. E foi assim que tropeçou e literalmente caiu num novo olhar. Descobriu seus próprios quereres: perder-se em novos sentires.

Tetraplegismo

As paredes do quarto eram os limites do mundo dela. Os sons eram apenas Elton John na vitrola da irmã e os gritos esparsos do bem-te-vi na janela. O dia eram rabiscos feitos na vida que escorria na cadeira.
À noite, a alma dela acendia. O barulho da chave dele na fechadura trazia vida ao seu corpo. A boca recriava na sua o amor que lhe devolvia a ilusão de movimentos. Os olhos dela contavam-lhe das saudades. A voz dele trazia-lhe a vida lá de fora. O calor do corpo dele na cama ressuscitava-lhe a esperança. E ela voltava a acreditar nos seus sonhos.
Uma noite ele não voltou. O dia nunca mais nasceu. Nada lhe sobrou. Nem a opção de apagar as estrelas que, dentro da moldura da janela, teimavam em continuar brilhando.

Ad Infinitum

Todos os dias elas se encontravam ali. No centro da sala, na mesma mesa. A vida escrita nos rostos. Mãos incertas. Olhos passivos. Iguais na sua diversidade.
Todos os dias as lembranças comiam no mesmo prato. E lágrimas furtivas enraleciam o feijão com farinha. O barulho das colheres coloria as pausas da memória. E as histórias ganhavam nova aquarela.
Um dia uma cadeira ficou vazia. As outras trás fingiram não perceber. Continuaram falando com a ausente. E até viam as lágrimas que ela escondia. E ouviam barulho de sua colher cobrindo o choro delas.
Foi assim durante dias. Até que a cadeira foi ocupada. Os olhos das três acordaram. E neles a tácita certeza. Haveria sempre outras histórias ocupando cadeiras vazias.

umdiadecadavez

De repente, a vida virou susto. Uma escolha se fazia necessária: o prazer imediato ou a felicidade construída. Seguir em frente não era mais trocar passos impunemente. E descobriu: para ganhar era preciso perder. Para crescer era preciso doer.
Perdeu-se. Não se sentia capaz de escolhas radicais. Jogar fora as muletas e sair andando era o desafio. Andando sozinho. E descobrindo sozinho as várias faces da dor. A vida se bifurcara e não havia mais volta. Chegara o tempo de perder. E enlutar-se pelas perdas. Luto que deveria ser apenas seu. Só assim renasceria.
Durante dois dias andou sem sentido. Como olhar a vida sem as lentes de aumento que as drogas proporcionavam? Já nem sabia se enxergava ou se apenas via. E enquanto se resolvia, mais se drogava. E mais se perdia.
No terceiro dia, chegou ao limite. Na boca, o gosto amargo da saliva grossa. No corpo, a falta de prumo. Na memória, os olhos sofridos daqueles que o amavam. Vasculhou os bolsos e pescou o papel amassado. Nome, endereço, telefone. Sem pensar na encruzilhada, escolheu o caminho. Era só o primeiro passo da grande caminhada. Um dia venceria. Queria. Podia.
Venceu. Escolher ser um vencedor.

umdiadepoisdeoutrodia

I
Aniversário de quinze anos e ninguém se lembrou. Deu-se um presente: abandonou a casa da tia. A rua não lhe batia. A cola não lhe deixava com fome. O sexo não lhe deixava sozinha.
O carro apareceu de repente. Ela juraria que surgiu do nada. Ouviu murmúrios raivosos e sirene gritando. Acordou limpa numa cama limpa cercada de paredes limpas. Cheiro de remédio. Dor no peito. Cabeça oca. Perna imobilizada.
II
Olhou-se no espelho. O cabelo crescia negro. A pele voltava a ser branca. Olhos brilhantes de vida nova. Carne vicejante. A rua virara passado.
Os velhos davam-lhe trabalho, comida e sorriam para ela. O filho deitava-se com ela noite sim, noite não. A nora deitava-se com ele entre um plantão e outro.
E a vida sorria feliz.

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