Redescoberta
Tetraplegismo
À noite, a alma dela acendia. O barulho da chave dele na fechadura trazia vida ao seu corpo. A boca recriava na sua o amor que lhe devolvia a ilusão de movimentos. Os olhos dela contavam-lhe das saudades. A voz dele trazia-lhe a vida lá de fora. O calor do corpo dele na cama ressuscitava-lhe a esperança. E ela voltava a acreditar nos seus sonhos.
Uma noite ele não voltou. O dia nunca mais nasceu. Nada lhe sobrou. Nem a opção de apagar as estrelas que, dentro da moldura da janela, teimavam em continuar brilhando.
Ad Infinitum
Todos os dias as lembranças comiam no mesmo prato. E lágrimas furtivas enraleciam o feijão com farinha. O barulho das colheres coloria as pausas da memória. E as histórias ganhavam nova aquarela.
Um dia uma cadeira ficou vazia. As outras trás fingiram não perceber. Continuaram falando com a ausente. E até viam as lágrimas que ela escondia. E ouviam barulho de sua colher cobrindo o choro delas.
Foi assim durante dias. Até que a cadeira foi ocupada. Os olhos das três acordaram. E neles a tácita certeza. Haveria sempre outras histórias ocupando cadeiras vazias.
umdiadecadavez
De repente, a vida virou susto. Uma escolha se fazia necessária: o prazer imediato ou a felicidade construída. Seguir em frente não era mais trocar passos impunemente. E descobriu: para ganhar era preciso perder. Para crescer era preciso doer.
Perdeu-se. Não se sentia capaz de escolhas radicais. Jogar fora as muletas e sair andando era o desafio. Andando sozinho. E descobrindo sozinho as várias faces da dor. A vida se bifurcara e não havia mais volta. Chegara o tempo de perder. E enlutar-se pelas perdas. Luto que deveria ser apenas seu. Só assim renasceria.
Durante dois dias andou sem sentido. Como olhar a vida sem as lentes de aumento que as drogas proporcionavam? Já nem sabia se enxergava ou se apenas via. E enquanto se resolvia, mais se drogava. E mais se perdia.
No terceiro dia, chegou ao limite. Na boca, o gosto amargo da saliva grossa. No corpo, a falta de prumo. Na memória, os olhos sofridos daqueles que o amavam. Vasculhou os bolsos e pescou o papel amassado. Nome, endereço, telefone. Sem pensar na encruzilhada, escolheu o caminho. Era só o primeiro passo da grande caminhada. Um dia venceria. Queria. Podia.
Venceu. Escolher ser um vencedor.
umdiadepoisdeoutrodia
Aniversário de quinze anos e ninguém se lembrou. Deu-se um presente: abandonou a casa da tia. A rua não lhe batia. A cola não lhe deixava com fome. O sexo não lhe deixava sozinha.
O carro apareceu de repente. Ela juraria que surgiu do nada. Ouviu murmúrios raivosos e sirene gritando. Acordou limpa numa cama limpa cercada de paredes limpas. Cheiro de remédio. Dor no peito. Cabeça oca. Perna imobilizada.
II
Olhou-se no espelho. O cabelo crescia negro. A pele voltava a ser branca. Olhos brilhantes de vida nova. Carne vicejante. A rua virara passado.
Os velhos davam-lhe trabalho, comida e sorriam para ela. O filho deitava-se com ela noite sim, noite não. A nora deitava-se com ele entre um plantão e outro.
E a vida sorria feliz.