No rastro da estrela

Estava naquele momento em que me sentia bonita apenas para quem me amava. Olhos de amor são míopes, enxergam apenas o que querem ver - repetia-me, dia após dia, a crueldade do espelho. Naquele dia ele estava ainda mais cruel. Foram muitos os minutos que perdi numa briga incoercível com meu próprio reflexo. Capitulei. E saí arrasada pelos cabelos rebeldes, as gordurinhas laterais e aquele absoluto gosto de nada na boca. Não havia outro lugar para refugiar minha figura isenta de pretensões senão uma livraria. Ali eu poderia alimentar meu estômago que andava depressivo, minha providencial fome de letras e esquecer-me de mim.
Pedi um café com creme e juntei à minha frente todos os livros que queria ver - muito mais do que conseguiria numa única tarde. A memória auditiva registrava feliz o som melodioso de Eric Clapton no fundo do salão. Perdi a noção do tempo - até ser acordada por uma voz pedindo licença para sentar-se à minha mesa.
Olhei em volta. A tarde chuvosa virara noite de tempestade. Dentro, todos os espaços estavam ocupados. Cheiros, sons e um clima de cores instalara-se à minha volta sem que eu percebesse. Olhei a voz sem ver o homem. Com um sorriso, que não era para parecer falso, convidei-o a sentir-se à vontade. Sem nenhuma intenção de conversar, voltei ao seguro mundo das letras.
Quis o destino que, ao ser adoçado, o suco do meu vizinho invadisse a capa do livro que me escondia. Minúsculas gotinhas amarelas com um arrasador poder de invasão - eu pensaria mais tarde. Num acesso de gentileza - que ao meu humor pareceu um tanto exagerado - ele desculpou-se, limpou o livro, desculpou-se de novo, limpou de novo o livro. E definitivamente arrasou com a minha concentração!
Olhei o homem...

II

Olhei o homem. De verdade. Alto. Muito alto - pareceu à minha recente pequeninice. O rosto deixou de ser comum quando o sorriso acendeu a beleza da boca. Os olhos ganharam a malícia dos felinos.
Num daqueles olhares-flash, fotografei a figura como um todo. Roupas impecavelmente brancas, mal escondendo a tensão dos músculos - e não eram grandes músculos, apenas músculos. Dedos longos que pareciam ter um pensar próprio. Pequenas linhas de tensão dando gravidade ao rosto jovem. Um cirurgião, com certeza. Um jovem cirurgião – brinquei com a minha intuição.
Olhei-me na memória. Gostei ainda menos do que vi, mas nunca o deixaria perceber meu próprio menosprezo. A estima estava destroçada, mas o orgulho intacto. Com um tímido movimento de corpo, assumi uma postura de erudição - que ele não precisava descobrir falsa - e apostei no conjunto olhos-óculos. Veio-me uma certeza consoladora que a imagem dúbia de rato de biblioteca o faria voltar aos seus livros.
Para meu desespero, não voltou. Ignorando todo meu esforço - ou entendendo-o - o provável cirurgião-plástico (agora eu tateava às cegas, já mapeando todas as minhas imperfeições) fez o comentário mais inteligente que eu já ouvira sobre o Borges grudado nas minhas duas mãos. Era tão seguro, tão conhecido, tão convidativo aquele terreno que me enveredei por ele. E era o único caminho que me permitiria ser mais do que apenas uma coisa cinza e amorfa segurando um livro.
Desafiando a mim mesma, adotei tom e postura irônica na conversa que ele começara. Não sei em que tempo seguinte comecei a escorregar. E sem perceber, caí direto no terreno da sedução - dele! De perceptível havia apenas um formigamento - aquele que antecede os desejos incompreensíveis - correndo de ponta a ponta em mim. E abrindo espaço para uma ainda mal orquestrada música entrar em meus ouvidos.
Encantamento...

III

Encantamento era como se chamava aquele estado de avançar às cegas no querer. Eu não era eu. Podia jurar que aquela que sorria faceira e que respondia sedutora às provocações não era a mesma que esteve em luta renhida com o espelho. O espelho mudara – era isso. Agora era um par de maliciosos e castanhos e perscrutadores olhos masculinos. E a imagem que ele começava a refletir era como eu queria me reconhecer.
A chuva ainda riscava os vidros da janela quando me lembrei que precisava comprar pão. De onde saíra aquela pernóstica lembrança só Deus saberia. Quem quereria comer pão quando se podia lamber o néctar, ainda que de um único deus? Eu e minha renascida insegurança de rato de biblioteca que corria ao menor sinal de perigo.
Atrapalhada com os pensamentos tropecei nas palavras, nos livros e – tinha certeza – trinquei a imagem do novo espelho. Mas ao olhar o homem, quase caí novamente na sedução da boca que sorria torto. Ele me lia – eu tinha aquela covarde certeza de quem foge do inevitável.
Levantei-me outra vez no anonimato dos olhos-óculos. Gentil, ele também se levantou. Toda minha recém-adquirida segurança para uma despedida-orgulhosamente-literária desmontou frente ao homem todo inteiro. Não bastasse o encanto dos olhos, da boca, das palavras, era um homem todo inteiro. Alto. Ainda mais alto do que eu sempre quisera. E foi este homem todo inteiro – ainda com sorriso nos olhos – que me levou até o carro.
A chuva escorria insensível pelo meu rosto, não sem antes deixar os cabelos lambidos e a estima balançando à beira do abismo. Levantei os olhos para a definitiva despedida – irrazoavelmente com aquele sentimento de saudade pelo que não aconteceu – e vi os meus óculos balançando-se nas mãos dele. Sorri. Ri. Gargalhei. E agradeci aos céus por não ter perdido o velho humor de pisciana que ri de si mesma.
E veio a louca vontade de dançar na chuva...

IV

Aconteceu o dia seguinte. Não por acaso. Nem por minha iniciativa. Embora o beijo tivesse dormido na minha boca, eu ainda era apenas uma réstia de claridade vermelha – como quando a aurora anuncia um novo dia.
O espelho não estava de todo satisfeito, mas o brilho nos olhos denunciava alegria. A tempestade passara. E a lembrança de um abraço molhado inundava de cor o rosto que estivera perdido em isenções.
A mesma livraria, os mesmos cheiros, o mesmo burburinho educado. E dois novos personagens. Ganhei um novo nome: Waita. Dei um novo nome: Law. Lentamente uma história foi se construindo. E lentamente fomos construindo dos personagens. E na tessitura da nossa história, aconteceu de ele me cobrir com uma roupa que ele próprio inventara. E era uma roupa tão linda que me vesti dela. E aconteceu de eu o vestir com todos os meus desejos mais imediatos. E eram desejos tão belos que ele se vestiu deles.
Então a tarde virou noite enquanto estávamos distraídos. E enquanto estávamos distraídos, o som de blues dez dos nossos vazios uma represa prestes a ser inundada pela abertura de comportas apenas pressentidas. Quando a literatura deixou de ser um escudo, os mesmos desejos que nos vestiram colocaram-nos frente à nudez. Éramos Waita e Law iniciando uma caminhada pelos sentidos.
E era uma caminhada possível apenas às mãos que se reconhecem e que juntas compõem uma única melodia.

V

Durante semanas nossa identidade foi recriada pelos nossos desejos. Desejos da carne, do intelecto, da alma. E era como se fosse a primeira vez. Velhas e bobas palavras surgiram como descobertas nossas. E o verbo se fez carne e habitou entre nós.
Foi o tempo de me sentir inteira, imaculada e nova. Tempo que uma flor leva entre o desabrochar e o fenecer em pleno gozo do seu poder de flor.
Assim foi a paixão. O perfume novo foi aos poucos se misturando ao velhíssimo ar de nós mesmos. E a roupa que vestimos começou a parecer com todas as roupas vestidas ao longo da vida. E os nossos sentidos começaram a acomodar-se como líquido em decantação. Os sentimentos, antes estranhos, tornaram-se conhecidos e passaram a nadar entre nós como folhas secas de outono.
Assim, fomos nos revelando um ao outro. E ao revelarmo-nos, fomos nos desconhecendo.

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