Cálice

Sentadas, frente a frente, medíamo-nos. Eu me perdera de vista. Marisa perdera o ar brejeiro e ganhara aspecto felino. Houve um tempo em que éramos espelho uma da outra. Fora sempre assim. Diferentes e iguais. Mas ligadas por fios inquebráveis. Até que ele surgira em nossa vida e nos separara. Uma gravidez indesejada transformara meus sonhos em realidade. E a realidade dela, em sonhos.
Estava ali a meu convite. Convidei-a para testá-lo. Mas estava testando era a mim mesma. E não mudara. Continuava escrava da incerteza. Olhei-o sem saber se o admirava ou desprezava. Camisa aberta no peito, mãos firmes e aquele infindável olhar de menino perdido que ora me fascinava ora me fazia querer bater-lhe na cara. Eu vivia entre a vontade de arranhar-lhe o peito feito fêmea no cio e o desejo de massacrá-lo sob os pés como a um inseto abominável. À frente dela. Como estávamos agora. Fragmentar a imagem do homem que ela amava, já que fora impossível destruí-la dentro dele.
Olhei-me por dentro. Uma vontade insuportável de gritar. Pensei nos cabelos que eu caprichosamente coloria. Os fios brancos eram como uma apólice vencida a me cobrar uma atitude. Sempre me faltara coragem para resgatá-la. Enquanto isso, Marisa crescia dentro de mim e dele, como uma volumosa enxurrada ameaçando nos arrastar para o abismo.
Incomodada com o silêncio rumorento, levantei-me. Andei até a janela sabendo ser seguida pelos olhares dos dois. Nenhuma palavra entre nós. Apenas a certeza de que uma inundação estava preste a invadir a sala. Parecíamos protagonistas de um melodrama de cinema mudo. Tudo o que eu sempre quis foi ser Isolda de Tristão. Mas não passava de um triste isolante na corrente de alta tensão entre os dois.
O relógio na parede estraçalhou o silêncio. Coração em disparada olhei-a e constatei a minha renovada inveja. Sempre tive uma inveja danada dela. Dos seus olhos maliciosos, de sua coragem desafiadora, da sua grande capacidade de salvar as aparências. E especialmente da sua habilidade em conservá-lo escravo de um amor que nunca se cansava de existir.
Uma revolta veio de dentro e virei palavras. Vomitei todos os anos de dolorosa insegurança. E foi uma correnteza tão soberba que parou o tempo. De alguma forma eu queria descabelá-la, mesmo que todos os fios da cabeleira escura continuassem aristocraticamente em perfeita rebeldia. Mas seus olhos eram tão tranqüilamente castanhos a ponto de me calarem. Foi dela o epílogo. Tão surpreendente quanto o brilho límpido dos olhos. Serena, bela e inteira, despediu-se:
- A vida é resultado das nossas escolhas. Procure em você mesma as respostas que está buscando em mim.
Fiquei com o silêncio dele. E a certeza de que a última gota transbordara o cálice e transformara vinho em sangue.

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