Presente

A noite escorregava ante seus olhos de um jeito amoroso. Tudo à sua volta tinha o brilho da satisfação que lhe ia por dentro. Fosse criança dançaria daquele jeito descoordenado, mas encantador aos olhos adultos. Não era criança. Era um homem que perdera a família, perdera o emprego, perdera a si mesmo. Os motivos, também já os perdera. Mas estava vivo. E o dia seguinte seria Natal.
Serenamente feliz afagou o presente em suas mãos. Pedira à vendedora que caprichasse no embrulho. Muita coisa lhe acontecera e aquele presente era o significado daquelas muitas coisas.
Sua vida começou a descortinar-lhe ao ver o retrato da filha sobre sua cabeça. O susto do reconhecimento fora tão grande quanto era aquele sorriso e aqueles olhos tristes em meio a tantas carinhas sorridentes que o outdoor mostrava para a cidade. Os olhos eram os seus. E alguma coisa no jeito de pousar a cabeça no ar. Uma filha – único legado que deixaria para a posteridade. E fora incapaz de conservá-la sua.
Descobriu-se amando-a mais do que a si próprio. Na verdade, nunca se amara. Não amara ninguém. Nos últimos tempos amara apenas a bendita embriaguez que o tornava sem dores. E sem cores.
Afagou novamente o presente e pousou de leve o dedo na campainha. O eco dentro da casa deixou-o de coração pesado. Outra vez e apenas eco. A esperança teimava em comprimir-lhe o dedo contra a campainha. Sentou-se nos degraus olhando o presente. A noite agora era fria e muda. O tempo passou-lhe quieto e pesado.
Acordou com um raio de sol que teimava em ressuscitar-lhe a esperança. Olhou-se e viu-se pela primeira vez em muito tempo. Era um homem sentado com um presente na mão. Apenas isto. Uma pessoa sabe quando está prestes a cair no fundo do poço. Mas o fundo não era mais onde queria estar.
Virou obstinação e escolheu continuar em busca de si mesmo. Estava decidido. Faria da árvore de natal o depositário de todos os presentes que se daria. Até que tivesse de volta o sorriso da filha.
Levantou-se ávido de vida. A alegria de viver já o tomara. Irremediavelmente. Paciente e digno desceu os degraus e pisou a calçada de pedras lisas e iguais.
- Papai!
O sol sorriu em grande luz. Com os braços da filha em volta do pescoço sentiu-se em pleno esbanjamento de si mesmo. E a vida pulsou-lhe com força, concretizando-o como nunca antes se sentira concreto.
Mais do que a filha, ele próprio emergia como seu presente de Natal.

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