Em nome da vida

Os pés lhe doíam quase tanto quanto a barriga. Rasgados pela caminhada de dois dias. Caminhada inútil. Encontrara apenas portas que se fechavam.
Olhou o céu. Espantou-se com o riso aberto do dia azul. Deu-se conta de que há muito não se sentia assim tão debaixo do céu. Perdera o hábito das coisas da vida. Desde que mandara para o inferno a desgraçada que escolhera para ser a mãe de seus filhos.
O rosto dela chegou reluzente à sua frente. Tinha dezesseis anos e a inocência brincando nos olhos de gata. Pagou ao pai dela para carregá-la. Deu a nesga de terra que tinha e o que havia economizado para comprar sementes. Trocou com prazer. De dentro da sua alma vinha a certeza de que ela nascera para ser mulher dele.
Menos de dois anos na cidade grande e a certeza era outra. Um par de chifres era o que ele soubera porque encontrara o desgraçado na sua cama. Mas podia ler nos olhos dos vizinhos que havia mais. Não quis saber. Passou fogo nos dois. E faria de novo. E pagaria de novo naquele inferno onde vivera os últimos doze anos.
Uma fincada na barriga trouxe-lhe todos os cheiros e gostos que lhe eram proibidos. Por dentro dele a necessidade de enganar o bucho o fez sentir-se perdido num redemoinho. Precisava de qualquer coisa que lhe pesasse lá dentro e matasse aquela dor. Olhou em volta. As pessoas passavam por ele como se fosse um poste. Ou uma pedra no caminho. Ou um nada invisível. Pedir ele não sabia. Nem roubar. Tinha princípios. Fora criado na santa igreja católica. Não era porque tivera que matar a filha da puta que iria rasgar a fé que sua mãe lhe ensinara.
Era mesmo um idiota. Ele já estava perdido para Deus. Um pecado a mais não lhe faria diferença. Olhou a loja de comida. De lá vinha o cheiro de carne misturado com o que ele lembrava de um bom copo de cerveja. Fazia dois dias que a porta do presídio fechara às suas costas. Dois dias de um inferno pior. Um inferno onde ele não cabia. Onde não havia mais espaço para ele.
De cabeça baixa continuou descendo a rua. A fome revolvia-lhe as entranhas. Dos pés vinha o martírio de Cristo. Não conseguia mais pensar. Parou. Na imobilidade pesada, apenas o cheiro de comida vindo do restaurante em frente. Precisava comer. Nunca que imaginou sentir tanta saudade do baguá servido na prisão.
Entrou. Sem comando próprio suas mãos obedeceram à ordem imperiosa da fome. Fecharam-se. Num golpe seco estilhaçou o vidro que o separava da vida imediata. Aquela invasão garantiria-lhe a sobrevida do momento e mais uns meses de almoço e jantar. Agarrado pelas costas, reagiu. Com dois movimentos dos braços fortes garantiu comida para o resto da vida.
Ignorando o movimento histórico que causara, sentou-se no chão. Tranqüilamente devorou tudo que pode antes que a viatura parasse na porta. De cabeça erguida entrou e sentou-se no chão do veículo. Desta vez não se sentiu gado sendo levado ao matadouro.
Pelas grades e vidros olhou o céu pela última vez. Pela última vez fez o sinal da cruz e despediu-se do homem que fora doze anos atrás.

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