Tempo de ser

A manhã a encontra vazia de sonhos. Uma sede de cheiros novos faz seu corpo pular. A vida volta-lhe no aroma de café forte e quente.
Deixando para trás uma fileira de portas fechadas, o estômago, agora vivo, leva-a à cozinha daquele velho casarão. Bancos de madeira bruta convidam-na a entrar. Naquele momento, o mundo é feito de biscoitos e broas que circundam um bule colocado por mãos pretas e calosas. A primeira verdadeira refeição matinal em muitos anos.
Olhando pela janela se vê em meio a um mar verde. A casa é o centro de um grande círculo colorido. Até o sol é concêntrico. Não ousa olhá-lo. Sem mover a cabeça, o vê se achegando a ela. Cresce com o espaço à sua volta. Elástica, enorme, abraça o ar - uma criatura assim solta pode se sentir grandiosa, o céu encontrando a terra lhe dá esse poder.
Pensa na vida deixada atrás de si. Sons mecânicos, ar pesado, vidas que passavam umas pelas outras como linhas que nunca se cruzavam. Pensa nele - Daniel. O homem que fez a vida girar em sentido contrário. Lembra seu olhar doce, sua boca gritante, sua sensualidade nos gestos quase femininos. Seu coração fica mudo. O silêncio absoluto toma conta do seu corpo. Trôpega sua mente traça círculos em volta da decisão que a espreita. A paz do imenso verde quebra-se. A escolha já havia sido feita. Está aqui para criar forças. Enfrentar o mundo é tarefa hercúlea - sempre se viu debaixo do mundo.
Levanta-se. Anda infinitas horas. Ela, que nunca gostou de pisar pedras, leva agora as sandálias na mão. Há um prazer profano na dor que os pés espalham pelo corpo. Uma orgia de sentidos a faz tonta. Mesmo o sol, é puro sentido. Pouco a pouco ele vai se infiltrando em seu corpo e espalhando um delírio de sensualidade quente como quando se está prestes a morrer no amor. Morrer nos braços de Daniel. Dar as costas ao mundo, ignorar os olhos mudos do marido, fechar a porta da infelicidade.
Lentamente seus passos vão fazendo o caminho de volta. Lentamente seu coração vai ganhando sons.
Levanta o rosto e se deixa invadir pela vida. É tempo de dar as mãos à felicidade.

E-mail da autora: