Maria

A alegria era tanta que as estrelas brilhavam apenas para ela. Soubesse dançar, pegaria nos braços o primeiro que passasse e inventaria uma valsa. Dois anos de trabalho duro coroados por uma promoção muito além do que esperava. Abriu a porta cantarolando baixinho. Faria uma bela surpresa ao seu amor: nunca mais trabalho noturno!
Passou no quarto do filho e deu-lhe um beijo silencioso. Seu anjo, metade da sua vida.
Silenciosamente entrou no banheiro e tirou toda a roupa. Olhou os seios no espelho: ainda rijos e convidativos. Ajeitou os cabelos, tingiu os olhos de sedução e abriu vagarosamente a porta do quarto.
O raio de luz indiscreto entrou antes dela e brilhou sobre uma cabeleira vermelha. Corpo nu e bronzeado largava-se sobre seu lado da cama. Coração disparado, ficou a olhar as pernas grossas e uma bunda com minúsculas marcas de biquíni. Fechou novamente a porta. Não havia pensamento, apenas uma dor latejante comendo suas entranhas.
Encostou-se na parede e deixou o corpo ruir. Sentiu-se flutuando num mar de agonia. Nenhuma tábua de salvação. Vários pedaços de um barco naufragando.
Voltou à infância. Apertou com força os olhos e rezou ao anjo da guarda. Quando seus olhos voltassem a olhar o mundo o pesadelo teria terminado.
Inconscientes, as lágrimas desceram. Nenhum som, apenas o sal da tristeza. Do quarto, o ressonar tranqüilo de dois corpos cansados.
Viu-se espectadora de sua própria imaginação. As mãos do marido deslizando por um corpo vermelho. Seus lábios grossos brincando nos pelos - será que eram também vermelhos? Sentiu a dor penetrar-lhe o sexo ao imaginar o corpo rijo e bem cuidado sobre outro que não o seu.
Entrar lá, puxá-la pelos cabelos e expulsá-la de casa. Depois, olhar nos olhos do marido e jogar os dados: perder ou ganhar. Imaginou-o arrependido pedindo-lhe perdão. Perdoaria, mas a cada dia sonharia em encontrá-lo novamente na sua cama. Imaginou-se com a mala em uma mão e o filho na outro. Sem promoção, vivendo sabe Deus onde. Lembrou da mãe dormindo no quartinho dos fundos.
Lentamente levantou-se e foi para o banheiro. Lavou o rosto, vestiu-se e saiu. Subiu e desceu todas as ruas que encontrou. Às sete horas entrou em casa. O marido já estava no banho e o filho ainda dormia. Exatamente igual a todos os dias.
Exatamente igual a todos os dias, ela foi para a cozinha colocar no fogo a água do café. Entreabriu a porta do banheiro e com um sorriso dolorido explicou porque não transaria: dor de cabeça. Fora uma noite de muito trabalho.
Tomou uma xícara de café e preparou-se para lavar as louças, limpar a casa e lavar as roupas dele. Se Deus ajudasse, dormiria depois de levar o filho à escola.
A dor? Seria apenas mais um segredo. Ninguém saberia dela. Nem a mãe, nem o filho. E se fizesse um grande esforço, nem mesmo ela.

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