A irreversibilidade da vida

As más línguas andam dizendo que saí despedaçada daquela briga. Como são pobres de espírito! Certamente não conhecem – ou não entendem – o orgulho e a força da minha estirpe. Sou uma rainha! É de se imaginar que uma rainha deixe pedaços pelo caminho? Ou que se deixe despedaçar por um plebeu? É bem verdade que minhas pétalas andaram trêmulas e meu perfume esteve direcionado para aquela esfinge plebéia. Mas foi um delírio de um dia quente de verão. Digamos que tenha sido um capricho feminino. Ou o efeito estufa prejudicando o meu juízo. Mas passou. Olhei-me a tempo. A tempo de evitar a loucura de uma mutação genética na minha descendência. Ainda que ele seja o espécime masculino mais desejado e mais apaixonante deste jardim.

É orgulhosa aquela danada. Mas como é gostosa! E quando fica vermelhinha de raiva é ainda melhor. Ela acha que acreditei no teatro que fez quando foi me visitar. Por detrás daquele lindo narizinho empinado, percebi a atração que sente por mim. Da nobre raiz aos delicados pistilos. Com toda a empáfia de uma rainha, disse-me que estava ali cumprindo um compromisso moral. Não era flor de se esquecer de seus súditos, menos ainda de negar-lhes auxílio quando mais precisavam. Como se eu precisasse dela mais do que ela de mim! Sei o que ela quer, mas não sei se quero dar-lhe. Talvez eu dê, mas não antes de fazê-la reconhecer em mim o seu amado. Este dia chegará, palavra de cravo!


Tempos depois:
O jardim era um iluminado mar verde salpicado de cores e perfumes. Por ele passeavam casais perdidos em olhares apaixonados. E velhos companheiros sorridentes em suas reminiscências. E solitários absortos na sua luta para apanhar os sonhos. E as crianças como formigas diligentes misturadas a cigarras harmoniosas.
Aniversário da única filha daquela casa. Do canteiro onde nascera a rosa-rainha vinha o cheiro da saudade. Ela fora levada para a festa. Orgulhosamente bela. Apesar do burburinho das pessoas o cravo escutava apenas o silêncio da sua ausência. E em meio ao silêncio, sua vontade de fazer voltar o tempo. Nenhum dos dois havia imaginado uma vida tão curta para ela. Por ser bela e única deveria ali permanecer como a guardiã dos segredos da melhor linhagem.
Súbito ele foi colhido. E foi enfeitar a lapela de um impecável smoking. Entrou no salão olhando a todos. De cima. Como o acompanhante do convidado especial. Todos os olhos voltaram-se para eles. Mas os olhos dele estavam em busca da única luz que transformaria a noite em alvorada brilhante.
Numa ginástica de olhos a descobriu no outro lado da sala. Enfeitando a mão da aniversariante. Resplandecente no seu vermelho-segredo. Durante grande parte da noite sumiu e reapareceu por várias vezes sem tê-lo visto.
À meia-noite as luzes tornaram-se aconchegantes. O som de valsa inundou a sala. Por ironia do amor dos outros, encontraram-se. Ela entre as mãos dos dançarinos. Pálida, despenteada, pendendo para um lado. Toda sua nobreza desmanchando-se em fragilidade ao ritmo de dois-pra-lá, dois-pra-cá. Ele, roçando com leveza o rosto da aniversariante. Impecavelmente perfumado. Elegante e belo na fortaleza da sua origem.
Olhou-a. A força do seu olhar fez com que ela o descobrisse. O olhar dela pareceu surpreso. E triste. Prenderam-se pelos olhos. Quando as mãos foram colocadas junto aos corpos, suas pétalas encontram-se. Nunca estiveram tão perto um do outro. Nunca o perfume de um invadiu tão profundamente o outro.
Mas era tarde demais. Ela já não tinha mais forças, nem vontades, nem esperanças. O caule pendia para um lado e as pétalas entregavam-se à lei da gravidade. Mas seu olhar contava-lhe o segredo que ele já deveria saber. Ela esperara por ele durante todos aqueles dias.
Uma dor fina percorreu-lhe até o corte do caule. Seu orgulho escorreu. Alguma coisa com significado acontecia-lhe. Com um choque de reconhecimento, viu o orgulho transformar-se em saudade do que jamais viveria. E reconheceu-se pequeno, bobo, vazio.
Reagiu. Não poderia inverter os ponteiros do relógio. Mas poderia inventar um novo tempo. Deveria haver uma outra vida onde o aprendizado que doía-lhe na carne pudesse ser aproveitado. Renasceria. E arriscaria não ter nenhuma garantia, mas viveria cada dia como se fosse o último. Teceria a felicidade com os invisíveis fios das coisas pequenas, dos dias comuns. E amaria no presente. Intensamente.
Então, solitário e digno, fechou os olhos. E deu-se ao seu destino.

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